Artigo
Driblando fiscais ambientais na mata
26/09/2025
07:45
WILSON AQUINO
WILSON AQUINO*
Em meados dos anos 80, o Rio Cachoeirão, que deságua no Aquidauana, sofreu pelo menos dois grandes desastres ambientais em intervalos de pouco mais de um ano. Foram episódios de mortandade de milhares de peixes, que amanheceram boiando por quilômetros, chegando até o Aquidauana e ameaçando o Pantanal.
A cena era chocante. Ribeirinhos apavorados, pecuaristas e pequenos produtores tentando impedir que suas criações bebessem daquela água. Na primeira vez, o caso ficou no campo das teorias. Na segunda, também surgiram explicações inusitadas: alguns especialistas falavam em excesso de folhas em decomposição no fundo do leito, que teria reduzido o oxigênio da água; outros, no rigor do inverno. A versão virou até piada em colunas de jornal: houve quem sugerisse distribuir casacos e cachecóis aos peixes, para que não morressem mais de frio. Mas a realidade não tinha nada de engraçada: dourados, pintados, surubins, piás, corimbas e até jaús jaziam mortos sobre as águas.
Naqueles anos eu vivia o auge da carreira, iniciada no fim da década de 70. Rumores apontavam para a Usina de Álcool Quebra Coco, em Sidrolândia. Ao lado do fotógrafo Paulo Ribas, segui para investigar, com a anuência de nosso editor-chefe, Silvio Martins Martinez. Fomos barrados na entrada, mas não me dei por vencido: conversei com funcionários que entravam e saíam da usina, além de moradores do entorno, que confirmaram o que já se comentava — a usina teria sido a responsável pelos desastres. De volta ao jornal, trouxe à tona essa suspeita, que virou manchete principal.
Dois dias depois, o INAMB — Instituto de Preservação e Controle Ambiental (extinto em 1978 para dar origem ao atual IMASUL) — nos convidou para acompanhar uma vistoria, da usina até as comunidades ribeirinhas. Éramos apenas eu e Paulo Ribas, diante de quatro fiscais e funcionários da usina. Sugeri visitar os tanques de vinhoto, reservatórios do dejeto altamente tóxico gerado pelo processo de fabricação do álcool. Percebi, porém, que a presença de empregados na comitiva poderia comprometer a apuração: funcionários ficariam intimidados, e havia risco de sermos conduzidos a locais previamente escolhidos.
Foi então que, ao adentrarmos uma mata fechada, senti que era a chance de me apartar do grupo. Usei a agilidade e a resistência física que sempre tive, e rapidamente despistei fiscais e seguranças, que vestiam coturnos e uniformes pesados. Segui sozinho pela mata, guiado apenas pelo instinto de repórter.
Pouco adiante, encontrei um improvisado acampamento de trabalhadores da usina. Ganhei sua confiança e ouvi a verdade: dois tanques de vinhoto haviam se rompido dias antes, exatamente na data da mortandade. Relataram ainda que acidentes semelhantes já tinham ocorrido em outras ocasiões. Pedi que me mostrassem o caminho. Ao chegar, o cenário falava por si: a vegetação estava queimada, morta, como se um ácido tivesse varrido a vida. Não havia dúvida. A causa estava diante de mim. Descobri também tubulações que despejavam, de forma contínua, uma água escura em um pequeno córrego que passava pela usina, o Belchior. Funcionários disseram tratar-se da água de lavagem da usina.
Retornei à sede da empresa apenas horas depois, reencontrando o grupo com naturalidade. Para proteger a mim e ao fotógrafo — já que dormiríamos na usina, partindo apenas na manhã seguinte para conversar com ribeirinhos — omiti o que havia descoberto, alegando apenas que me perdera pela mata e pelos canaviais. Durante o jantar, sob olhares desconfiados, procurei agir com naturalidade.
Após a refeição, um diretor do grupo econômico — vindo de São Paulo especialmente para acompanhar a vistoria — chamou-me para uma conversa reservada. Reclamou que nossas matérias traziam prejuízos à imagem da usina. O tom da conversa insinuava algum tipo de “acordo”. Ao perceber a tentativa de conduzir a conversa para um possível suborno, cortei o rumo da prosa, ressaltando que a presença dos fiscais deixaria tudo muito claro.
No dia seguinte, seguimos apenas com os fiscais. Ribeirinhos confirmaram mudanças na cor e na temperatura das águas, provavelmente pelo despejo constante de dejetos pelas tubulações, relatando que já evitavam que seus animais bebessem dali. As evidências estavam todas diante de nós. Percorremos as margens do Córrego Belchior, até formar o Córrego Canastrão, que recebia volume de outras paragens até desaguar no Rio Cachoeirão, onde o maior número de peixes apareceu morto. Todos os depoimentos apontavam para a usina.
De volta à redação do Diário da Serra, publicamos a denúncia em manchetes de impacto: a Usina Quebra Coco era a responsável pelos desastres ambientais, conforme os próprios funcionários. Foram três ou quatro dias seguidos de destaque, alertando para o perigo do vinhoto e para a negligência com nossos rios.
O desfecho, porém, foi o mais previsível — e o mais lamentável. O INAMB se limitou ao burocrático “estamos investigando”. A usina, por sua vez, respondeu com publicidade paga em jornais semanais, de páginas inteiras, tentando desqualificar nosso trabalho e posar de empresa cuidadosa e geradora de empregos. Nenhuma punição exemplar. Nenhuma reparação. Nenhuma justiça.
Para mim, restou a consciência limpa. Cumpri o dever de jornalista: busquei a verdade, enfrentei obstáculos, resisti a pressões e não me deixei seduzir pelo poder econômico. Mas ficou também o gosto amargo da impunidade. Um retrato de um Brasil em que a força do dinheiro e do poder político, quase sempre, fala mais alto do que a defesa do meio ambiente e da vida.
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