Campo Grande (MS), Domingo, 03 de Agosto de 2025

Artigo

Lições com o sofrimento alheio

03/08/2025

08:45

WILSON AQUINO

WILSON AQUINO*

Era início dos anos 90. Jovem repórter, com sonhos efervescentes e planos a perder de vista, eu havia acabado de receber uma quantia significativa por um trabalho jornalístico extra. Caminhava feliz pela Rua 26 de Agosto, em Campo Grande, com a mente tomada por ideias sobre como aproveitar aquele dinheiro num feriado prolongado de Carnaval que se anunciava. Sentia-me realizado. Mas a vida, com sua maneira peculiar de ensinar, colocou diante de mim uma cena que interrompeu bruscamente aqueles pensamentos festivos e abriu em mim uma ferida doce: o despertar da compaixão.

Foi numa esquina com a Rua 13 de Maio que os vi. Uma família inteira — pai, mãe e quatro crianças — avançava lentamente pela calçada, carregando nas mãos sacolas, malas e no corpo o peso visível de uma vida sofrida. A mãe levava ao colo um bebê visivelmente enfermo, e mesmo exausta, equilibrava com o outro braço uma bagagem pesada. As crianças, todas pequenas, se esforçavam para ajudar. A imagem parecia ter saído de um livro de realismo dolorido: roupas surradas, rostos pálidos, olhos fundos, mas... nenhum murmúrio, nenhuma reclamação. Apenas a dignidade silenciosa dos que já nasceram em luta.

A cena ficou ainda mais angustiante quando o bebê, em meio ao esforço da caminhada, lançou um jato de vômito ao chão. A mãe mal teve tempo de reagir. Apenas parou. Foi quando me aproximei, chocado e comovido, e ofereci ajuda. Pararam a caminhada e as crianças, aproveitaram para descansar. Conversamos. Eram do Nordeste brasileiro. Haviam sido contratados para trabalhar numa propriedade rural no interior de Mato Grosso do Sul, mas foram dispensados sem aviso, sem recursos, sem acolhimento. O capataz os deixou próximos à rodoviária com alguns trocados e nenhum destino. Campo Grande era apenas mais uma cidade no meio de um caminho incerto.

Enquanto escutava aquele relato, olhava para os pequenos. Um deles, o mais velho, devia ter uns 10 anos. A expressão do seu rosto não era a de uma criança, mas de um adulto calejado. Sustentava com firmeza a sacola que carregava e parecia determinado a não fraquejar diante dos pais e dos irmãos menores. Era como se já soubesse que a vida não lhe daria tréguas. Nunca mais esqueci aquele olhar — firme, silencioso, responsável. Aquela criança, naquele instante, parecia mais madura do que muitos adultos que conheci na vida.

Sem pensar duas vezes, tirei do bolso todo o valor que havia recebido e entreguei ao pai da família. Ele recusou de imediato. Disse que era muito dinheiro. Mas insisti, pedi que usassem para resolver as necessidades mais urgentes, sobretudo o tratamento da criança. A mãe, em lágrimas contidas, me agradeceu. Eu me afastei, com o coração apertado, tentando evitar que devolvessem. Mas ao andar algumas quadras, fui tomado por um sentimento de arrependimento. Eu deveria ter feito mais. Poderia tê-los levado a algum abrigo, buscado uma instituição, indicado um trabalho. Voltei ao local. Procurei em vão. Eles haviam desaparecido pelas ruas da cidade. E eu fiquei com aquela cena gravada na alma para sempre. Ajudar é necessário. Mas ajudar com planejamento e responsabilidade é ainda mais valioso.

Esses sentimentos não nasceram por acaso. Desde pequeno fui levado a observar o outro com os olhos da empatia. Lembro de um episódio da infância, em Corumbá. Certo dia, fui chamar um colega para irmos juntos à escola. Ao chegar à sua casa, vi seus irmãos à mesa, almoçando apenas arroz branco. Aquilo me cortou o coração. Não era um acaso, percebi depois. A escassez ali era rotina.

Naquela época, meu pai, Manoel Dantas de Oliveira, que já havia deixado a Marinha, trabalhava agora comandando navios do Serviço de Navegação da Bacia do Prata, costumava trazer muitos alimentos quando voltava das viagens: sacos de charque, arroz, feijão, farinha, rapadura, frutas, legumes, queijo... Nossa casa era farta. Diante da cena de miséria, não hesitei: peguei uma sacola, escondido, e juntei alguns alimentos para levar à família do meu amigo. Minha mãe, Dair Aquino, ao perceber meu movimento, me deteve para conversar. Não me censurou. Mas me ensinou. Deu-me um longo e firme sermão sobre a importância da honestidade, mesmo diante de causas nobres. Disse que ser honesto com os pais era também uma forma de ser digno diante de Deus. E, ao final, me ajudou a completar a sacola e me acompanhou no gesto de doação.

Hoje, olhando para essas e tantas outras histórias ao longo de minha jornada, percebo o quanto somos moldados pelas dores nossas e dos outros — e também pelas lições dos nossos pais. O sofrimento alheio é uma escola que não cobra matrícula, mas exige sensibilidade para aprender. Ele nos humaniza, nos tira do centro do mundo e nos lembra que sempre há quem precise de nós — de nossa atenção, de nosso tempo, de nosso olhar, de nossa ação.

Que possamos, todos nós, aprender a olhar para o próximo com mais empatia. Que não passemos indiferentes pelos que sofrem à nossa volta. Às vezes, a maior bênção que podemos oferecer não é o que damos, mas o modo como nos envolvemos. O mundo precisa de mais mãos estendidas, corações atentos e gestos concretos de amor.

Como ensinou o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” (Mateus 25:40). E ainda: “Quando estais a serviço de vosso próximo, estais somente a serviço de vosso Deus.” (Mosias 2:17 — O Livro de Mórmon). Que essas palavras nos inspirem a sermos mais sensíveis, generosos e prontos a agir. Se cada um de nós fizer um pouco, esse pouco pode se tornar tudo na vida de alguém.

*Jornalista e professor


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